REPETECO
PAI-OPERÁRIO
Nos tempos da Brasital, Têxtil Assad Abdalla (atual York), Fábrica de Papel, etc., os empregados eram chamados de operários e até gostavam dessa denominação que hoje quase não se usa mais. Os pais-operários estão cada vez mais raros, mas décadas atrás eram eles que com seu trabalho diuturno mantinham as famílias, das menores às mais numerosas, fazendo estudar seus filhos e encaminhando-os para uma ocupação melhor.
Conheci bem um desses pais, que viveu a maior parte de sua longa vida entre as paredes de uma indústria, cujos vãos eram impregnados de fiapos de algodão. Calculava a produção das fiandeiras e nas poucas horas de conversa com os companheiros criticava o governo, “que não beneficiava o operariado”, cochichava nos ouvidos dos colegas sua admiração pelo Partido Comunista e lia aqueles jornaizinhos que circulavam de mão em mão, com matérias elogiosas a Lenin, Stalin e outros líderes vermelhos. Católico praticante, procurava conciliar suas preferências políticas com as religiosas, defendendo um “socialismo cristão”, que pregava nas conversas diárias.
Como a maioria dos operários da época, ia trabalhar trajando terninhos de brim, cujo tecido a própria indústria vendia aos seus empregados. Suas idas e vindas para a fábrica começavam cedo, por volta das 7 da manhã e quase sempre terminavam às 9 da noite, não sobrando muito tempo para dedicar à família. Mas quando não fazia hora extra aos domingos pela manhã, levantava mais tarde e, ainda na cama, contava histórias ao filho homem, repetindo sempre a do menino que plantou um pé de feijão, que cresceu, cresceu, até chegar ao céu. Seguia-se um bate-bola no corredor da casa simples da Vila Brasital, com a bola de borracha ganha no Natal e preservada o ano todo. O filho se satisfazia com essa atenção dominical, embora não fosse frequente.
Suas únicas diversões eram assistir aos jogos de futebol no domingo à tarde, as sessões de cinema no domingo à noite e participar dos jogos de bochas na Cooperativa. Não perdia a missa do domingo e nem as reuniões com seus companheiros vicentinos, tarefa que se orgulhava de desempenhar. Com a chegada da televisão, deixou de ir ao cinema e, no que se refere às suas predileções musicais, a única coisa que se sabe é que ele se emocionava ao ouvir os versos de uma antiga composição, sobre uma fonte que fazia “chuá, chuá” e as águas que ao correr faziam “chuê, chuê”.
O tempo passou, o filho cresceu e, arredio a princípio em suas relações familiares, passou aos poucos a compreender seu pai e dar-lhe maior valor. Um dia ouviu dele uma frase que o marcou: “Meus companheiros estão todos indo embora”, se referindo aos amigos falecidos. Ele começou a se sentir sozinho, ao se aproximar dos 90 anos, e seu filho percebeu o drama, causado por uma espécie de solidão que às vezes atinge até os que têm o apoio dos seus familiares.
Não demorou e um dia o operário se viu numa cama de hospital, quando percebeu que seu fim chegara. Mas não se entregou. Queria continuar vivendo para assistir ao crescimento dos netos, vê-los casar e ter filhos. Quando sua hora chegou, confessou baixinho para seu filho, prostrado numa cama de hospital: “Queria viver só mais um pouquinho...” Não viveu.
Esse típico pai-operário, igual a tantos outros que já não existem, poderia ser o pai de qualquer um de nós.
E foi.