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REPETECO

Incidente em Salto



Como na famosa obra de Érico Veríssimo, num certo dia a praça principal de Salto recebeu algumas pessoas mortas há muitos anos. Elas permaneceram durante todo aquele dia sentadas na escadaria da Praça Dr. Archimedes Lammoglia, ou circulavam pela praça ao lado, a Paula Souza, exatamente no local onde antigamente existia o coreto, destruído na década de 1950.

Em “Incidente em Antares” os mortos voltaram ao coreto da praça para contar certas verdades, revelar conchavos, expor as verdadeiras personalidades de figurões tidos como respeitáveis. Os desse nosso “incidente” tinham missão mais amena, como lamentar a destruição do coreto que existia naquele local, tema da conversa de dois antigos chefes políticos. Ali se apresentavam nossas bandas naqueles domingos sem Sílvios, Gugus, Faustões e Fantásticos, com a presença de homens de terno e chapéu, senhoras com vestidos bordados, que levavam as crianças, igualmente bem vestidas.

Estava ali na praça aquele senhor, ao mesmo tempo austero e simpático, que veio a Salto como interventor e que olhava para todos os lados, surpreendido com a modificação que o antigo centro sofrera. Perguntou pelo Coleginho, pelas freiras, pelo Bar do Boni... Três médicos, que tantos bons serviços prestaram à população, liam o jornal da semana e se surpreendiam com doenças que não eram tão faladas antigamente, como a Aids e o câncer, ficando admirados com a afirmação de que a gripe espanhola já não fazia tantas vítimas.

Dois imigrantes italianos, produtores de vinhos, queriam saber das suas parreiras de uva e ficaram tristes ao saber que os loteamentos invadiram a área dos parreirais e o município já não produzia vinhos como no início do século passado. Tristes também ficaram mulheres vestidas com roupas de algodão, dos pés ao pescoço, que tomaram conhecimento que desaparecera o hábito de fazer pão em casa. “Pão só nas padarias?”, indagavam surpresas.

Perguntas surgiam de todos os lados: “Como estão nossos clubes de futebol?”, inquiria um antigo craque que chegou a ser convocado para a Seleção Paulista. Mas nem tudo era tristeza: aquele artista de teatro, nosso “Mazzaropi”, que fazia as pessoas rirem, ficou feliz ao saber que Salto contava agora com vários grupos teatrais e revelava novos artistas. Também houve regozijo pela notícia de que a cidade contava com várias escolas e não somente com o único grupo escolar. Teve um professor, muito ligado à cultura, que ficou satisfeito ao saber que a cidade virou estância turística e agora tinha museu, parques, teatro, tudo aquilo com que sonhara.

Como no livro, aqueles personagens etéreos se foram no final da tarde, depois de terem sido vistos apenas pelos privilegiados e permanecendo apenas um dia no local, numa época bem adiante de sua época. Afinal de contas, como diria o bacharel Cícero Branco, um dos personagens de Veríssimo em seu “Incidente”: “Que é o tempo para quem já está na Eternidade?”.

“Crônicas da Cidade” - 2002

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