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REPETECO

Uma cruz à beira da estrada


Os antigos colaboradores dos jornais locais gostavam de relatar fatos, usos e costumes de sua época ou de épocas passadas, contribuindo para que os seus sucessores tivessem uma ideia de como era Salto há 50, 60 ou 70 anos atrás. Eles rememoravam aqueles momentos em suas crônicas, como as escritas no ano de 1950 por José Dias da Silva, filho do ex-prefeito Luiz Dias da Silva (1912-1916).

Numa dessas crônicas, publicada em maio daquele ano, ele conta que na Salto do início do século passado era comum encontrar, nas estradas e encruzilhadas do nosso município, dezenas de cruzes de madeira, cada qual com sua história, tendo ao seu derredor restos de cera e cotos de vela. Não tínhamos ainda em Salto estradas asfaltadas, mas verdadeiros “caminhos”, por onde transitavam carros de boi, charretes e troles, já que eram pouquíssimos os carros e caminhões, que tinham que ser importados.

José Dias da Silva conta que uma dessas cruzes de uma estrada vicinal assinalava o local onde foi encontrado o cadáver de uma negra, que caiu de um carro de boi quando era transportado de um sítio para a cidade, numa noite muito escura. Ela seria sepultada no dia seguinte e por isso tinha que ser trazida para um dos cemitérios de Salto, o que foi feito por familiares e vizinhos. Como a caminhada fosse longa e o carro ganhava a estrada morosamente, devido à marcha lenta dos pacientes bois, as pessoas encarregadas do transporte pegaram no sono. Ao se aproximarem da cidade, deram pela falta do cadáver, que estava envolto num lençol branco. Tiveram que voltar um bom pedaço de estrada à sua procura, mas a escuridão da noite era “negra como breu” e por isso nada conseguiram.

Só foram encontrá-lo dia já feito, caído num precipício. Como não foi possível remover o corpo do local, para pagar seu pecado erigiram uma cruz e todas as vezes em que eram forçados a passar por aquele trecho da estrada acendiam uma vela.

Como essa, todas as cruzes que se encontrava nas estradas tinham suas histórias, saturadas de arrependimentos e sacrifícios consagrados. Uma era em memória de uma criança atingida por um raio; outra de um velho cujas forças não foram suficientes para levá-lo até a cidade; uma terceira de uma mulher atingida por um boi bravo, mas poucas eram de vítimas de atropelamento, pois os raros veículos existentes não desenvolviam grande velocidade.

Ninguém ousava arrancar essas cruzes, que serviram de mote para muitas “tragédias musicais” de duplas caipiras. O povo supersticioso e crente as respeitava e jamais passava por ela sem benzer-se e fazer o nome do padre. Os mais medrosos preferiam um “cruz, credo!”, muito sintomático.

(Livro “Momentos” – 2003)

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