REPETECO
Tempo de “encher a cara”
Para muita gente as festas de Natal e Ano Novo é o tempo ideal para “encher a cara”, tomar todas: champanhes, vinhos, vodcas, cervejas, o que aparecer. É a hora em que mesmo aqueles que se consideram não alcoólicos emborcam uma quantidade de álcool suficiente para passar os trezentos e tantos dias restantes do ano em completa abstinência. Quem não está acostumado, tem que curtir uma dor de cabeça brava no dia seguinte e, se abusar, pode até se complicar e botar na história a comemoração de fim de ano, como algo que não deve ser lembrado ou repetido. É, não é fácil resistir ao apelo do álcool numa ocasião de festa. E se já é difícil para uma pessoa normal, imaginem para aqueles que durante um período de sua vida consumiram hectolitros de bebidas alcoólicas. É quando se põe à prova mais seriamente sua decisão de não mais consumir álcool, nas suas mais variadas formas. Essas pessoas um dia tomaram a atitude mais importante de suas vidas e têm que enfrentar uma batalha que se repete sempre, toda hora, todo minuto, todo segundo. São os alcoólicos anônimos, uma classe de pessoas que nos impressiona pela firmeza, pelo caráter e pelo cumprimento de uma promessa que fizeram a si próprios numa ocasião de suas vidas em que estavam incapazes de lutar contra o álcool, possivelmente sem condições de raciocionar perfeitamente. Conhecíamos alguns dos componentes desse grupo, que um dia nos convidaram para visitar a casa simples, cedida pela Sociedade São Vicente de Paulo, onde realizam suas reuniões, para dizer algumas palavras aos seus integrantes. Fomos para lá – confessamos – sem saber o que iríamos encontrar. Assim que ingressamos no local das reuniões, vimos alguns rostos conhecidos, pessoas com quem tínhamos contato ainda meninos, quando sequer imaginavam que um dia seriam escravos da bebida. Também havia homens que chegaram a ocupar importantes cargos na cidade, na política ou em empresas particulares, que ali estavam mostrando a cara, sem medo de confessar suas fraquezas. O que nos chamou a atenção é que a grande maioria sentia um certo orgulho por sua situação atual, quando está distante do que alguns chamam de “prazeres etílicos”. É gente que teve uma vitória pessoal que lhes proporciona uma dignidade enorme e por isso mesmo sentem na abstinência o mesmo prazer de quando experimentavam uma bebida qualquer. São homens de valor, que foram até o fundo do poço e encontraram forças para se recuperar. No A.A. eles não têm identidade, nem número, nem rosto, nem cargos. Podem entrar e sair a hora que quiserem, seus nomes não estão catalogados, não estão obrigados a nada, mas mesmo assim eles não deixam de comparecer às reuniões, onde se ajudam mutuamente e dão testemunhos pungentes para os que ainda buscam forças para trilhar o mesmo caminho. É o caminho da decência, da coragem, o caminhos dos fortes e dos homens de palavra, uma brava gente que já esteve lá embaixo e que hoje dignifica o ser humano. (Livro “Crônicas da Cidade” – 2002)