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CRONICANDO

Ridiculamente piegas



Acho que é hora de confessar certas coisas na idade avançada em que me encontro. Hoje vou revelar algo que sempre guardei comigo. Confesso: já fui um sujeito piegas, ridiculamente sentimental, aquele que se comove à toa. Foi na minha infância, quando era influenciado pelo rádio, no qual ouvia as músicas da época e não tinha o poder de seleção mais ou menos apurada que julgo possuir hoje. Guardei duas em minha memória e às vezes me surpreendo lembrando das letras, que são trágicas, pois uma conta a história de um passarinho que um vagabundo fez prisioneiro e a outra é sobre um menino que há tempos andava namorando um cavalinho exposto numa vitrine.

Aliás, numa crônica recente falei sobre meu desejo de ganhar um cavalinho de pau no Natal, mas não citei a música que deveria servir de base para expressar essa minha vontade antiga. Trata-se de “Ilusão de garoto”, de Vicente Celestino, aquele de “O Ébrio”, outra sentimentalóide. Nela ele fala que há tempos andava namorando um cavalinho da vitrine “lá da Rua do Ouvidor”, com seus arreios de prata e sua manta escarlate, que surgiu aos olhinhos de um menino “como um imã tentador”. Ele há tempos sonhava com o cavalinho e um dia esse menino, por força do destino, adoeceu pra morrer. Em sua agonia, ele apontava e sorria para um quadro na parede com a imagem de São Jorge. Termina assim: “E foi São Jorge milagreiro // No seu cavalo alazão // Que num galope ligeiro // O levou pela amplidão”.

A outra é “Passarinho prisioneiro”, de uma dupla desconhecida, que contava a história de um passarinho que pousou num galho seco para cantar aos seus filhinhos, mas um vagabundo corre depressa e arma um alçapão, que o prende. O vagabundo solta uma gargalhada e no dia seguinte o passarinho amanhece muito aflito, ouvindo os gritos dos seus filhos muito além. “Quer sair, mas as paredes lhe seguram // Oh, que amargura para um coração de mãe!”. Vai se batendo na gaiola e quase sem vida cai no chão ensanguentado, se despedindo da floresta onde aprendeu a voar. Diz adeus aos filhinhos, desejando que aquele monstro que roubou sua alegria “talvez um dia ele não torne a gargalhar”. Termina assim: “E o vagabundo corre então a abrir a porta // Mas ela morta não pode voar // E o pobre passarinho prisioneiro // No seu poleiro nunca mais torna a cantar”.

Acabou? Não, tem mais: em meus 9 ou 10 anos eu gostava também de moda caipira e comprava aqueles livrinhos com as letras das músicas cantadas por Tonico e Tinoco, principalmente, que eu cantava baixinho, sentado na calçada na esquina da Rua José Revel com a 23 de Maio, fazendo dupla com meu amigo de infância, Xisto Jamil Scalet. Hoje desligo o rádio ou mudo de canal quando aparece um cantor sertanejo de grande parte das músicas raiz, mas naquela época, sei lá por que, eu apreciava algumas delas. Até hoje, por exemplo, guardo na memória e consigo cantar grande parte de “Chico Mineiro” mentalmente, começando com “Fizemos a última viagem // Foi lá pro sertão de Goiás // Fui eu e o Chico Mineiro // Também foi o capataz // Viajamos muitos dias // Pra chegar em Ouro Fino // Aonde nós passemo a noite // Numa festa do Divino // A festa tava tão boa // Mas antes não tivesse ido // O Chico foi baleado por um homem desconhecido // Larguei de comprar boiada // Mataram meu companheiro // Acabou-se o som da viola // Acabou-se o Chico Mineiro”.

Como se vê, eu era adepto das tragédias, me emocionava com elas e hoje eu me pergunto por que trilhei por algum tempo esse caminho que hoje abomino. O que não consigo fazer é apagar da memória as tristes histórias do cavalinho da vitrine, do passarinho prisioneiro e do Chico Mineiro, que ocupam minha mente inesperadamente.

O que gosto de lembrar, porém, é do menino de calças rotas e curtas, descalço, despenteado, com a cabeça ainda vazia das coisas que a vida iria lhe proporcionar, muitas delas tão inúteis como essas histórias que o seguiram durante seus muitos anos de vida, incólumes às muitas tentativas de serem apagadas. Viraram até crônica...

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