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CRONICANDO

Necrológio de alguém em vida


Durante os mais de 60 anos em que militei na imprensa saltense escrevi centenas de crônicas sobre os mais variados assuntos, que escolhi aleatoriamente, relembrando fatos antigos, de acontecimentos ocorridos em várias épocas ou enfocando pessoas do meu relacionamento ou não. Não me lembro de ter sido solicitado a escrever uma crônica sobre alguém, mas nos últimos dias recebi um pedido incomum, que a princípio relutei em atender, mas depois, analisando-o mais com a emoção do que com a razão, resolvi aceitar a incumbência. Trata-se da redação antecipada de um necrológio e quem me solicitou foi um homem de 92 anos de idade, ainda não se tratando com o dr. Alzheimer, mas já apresentando alguns lapsos de memória, apesar de exercitar sua mente na solução de palavras cruzadas.

Não se trata de uma pessoa qualquer, mas aquele que contribuiu de forma decisiva para meu futuro no jornalismo e para minha própria vida. Eu tinha 17 anos de idade e há dois escrevia um comentário diário e o noticiário dos clubes saltenses num programa que era levado ao ar pela Rádio Cacique, cujo prefixo pertencia a Salto.

Eu descia ou subia (não me lembro bem) a Rua 23 de Maio e ao passar em frente à redação do jornal O Liberal fui chamado por um senhor que na época deveria ter 63 anos de idade, que me ofereceu trabalhar nesse órgão de imprensa que antecedeu o Taperá como responsável pela página de esportes. Ele era o redator principal de O Liberal e tinha como colaboradores dessa página algumas pessoas que a seu ver não estavam correspondendo e precisava de alguém com ideias inovadoras. Além disso, ele iria comandar um estabelecimento comercial da família que iria funcionar em Jundiaí, e ele teria que deixar a cidade.

Confesso: não me animei muito com o convite e não sabia que ele tinha partido de alguém que eu admirava pelos seus escritos em O Liberal. Só fui saber quando assumi minhas funções no jornal que ele era o H. Hamilton das crônicas que não deixavam nada a dever a Rubem Braga, Nelson Rodrigues, Paulo Mendes Campos e outros, que eu lia em revistas da época. Pensava: jamais vou escrever como ele. Relutei em aceitar a oferta porque o que eu gostava mesmo era escrever para uma emissora de rádio. Mas acabei aceitando, tendo feito meu primeiro comentário, escrito a mão com caneta-tinteiro em papel almaço, de um jogo amistoso entre o Guarani Saltense e o Ipiranga da capital.

Mesmo de Jundiaí aquele que me direcionou para o jornalismo impresso enviava algumas crônicas, que eu lia embevecido, porque ele era algo raro no jornalismo saltense da época, com condições inclusive de voos mais altos em virtude de sua inquestionável qualidade. Quando voltou a residir em Salto, consolidei uma amizade que mantenho até hoje, embora nossos contatos não sejam tão constantes como na época em que nos encontrávamos aos sábados na hora do aperitivo no Bar do Gustão, no no domingo no Clube de Campo Saltense ou em outros locais, dentre eles as comemorações dos aniversários do Taperá, para os quais eu sempre fazia questão de convidá-lo. Sempre achei que tinha para com ele uma dívida impagável, pois lhe devia meu ingresso e minha sequência no jornalismo local, ou seja, ele direcionou meu destino para algo que me faz feliz até hoje e que me permitiu sobreviver com uma renda que talvez não conseguiria obter em outra função. O melhor de tudo é que sempre fui incentivado por ele, o que me orgulhava, pois tinha em sua pessoa alguém com capacidade para avaliar quem militava na área.

Hoje, aos 92 anos de idade, sabe que está chegando perto do fim e por isso gostaria de saber como vou agir nos dias seguintes ao de sua partida, principalmente sobre a crônica que vou escrever sobre sua pessoa. Devo confessar que estou me arriscando. Pelo jeito ele vai durar ainda alguns bons anos e pode ser que este necrológio vá empoeirar na prateleira dos meus escritos. Também pode ser que ele fique e eu me vá antes de sua partida, mas vou correr o risco.

Terminando, não vou cometer a heresia de lhe desejar que Deus o acompanhe quando se for, pois o homem que admiro é ateu e faz questão de mostrar essa sua opção. Mas, neste necrológio que lhe faço em vida, não me furto de perguntar-lhe: quem, se não Deus, lhe deu tanto talento para encantar os que tiveram o privilégio de ler suas crônicas? Que lhe proporcionou uma vida tão longa e ao partir vai deixar seu nome gravado na história da imprensa saltense como um dos maiores destaques? Que fez-lhe feliz durante grande parte de sua existência e certamente vai recebê-lo sem preconceito, assim como recebe a todos igualmente. Tanto os que não creem, como os que acreditam em sua existência?


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